O túnel negro (C. Leonardo B. Antunes)
Ontem à noite, enquanto eu me deitava insone,
Imerso em aflições e planos suicidas,
Passadas horas desde um último sinal
De vida, exterior ao meu confinamento,
Que me lembrasse da amplitude das estradas,
Das montanhas que vão curvar-se no horizonte,
Dos rios e lagos onde há vida sob o sol,
Dos bosques em que um dia eu fui também menino,
Surgiu em minha mente abrupto e inescrutável
Túnel negro, semelho em forma e dimensões
Àquele que cavara há muito, muito tempo,
Quando ainda habitava as celas comunais.
(Sozinho, um homem não tem força nem vontade
Suficientes para escavar essa pedra,
Que pesa tanto sobre a terra quanto lesa
As esperanças de quem perde as unhas nela.)
Surgiu sem nexo e sem alarde, simplesmente,
Manifesto tal qual imagem da memória
Que se conjura, sem que assim sequer se queira,
Por associação fortuita ou descaminho,
Ainda que eu jamais o houvesse visto em vida
Ou mesmo em sonho; nem pudesse ter pensado
Em algo assim, que me escapasse de tal modo
À compreensão por seu simbólico mistério,
Pois de fato, apesar de muito o haver tentado
No decurso da noite insone (e como é longa
A noite dos que não conseguem descansar)
Por mil maneiras ter alguma compreensão,
A todo exame que se lhe tentasse impor,
A toda forma de escrutínios indiretos,
A tudo que algum dia alguém já contemplou
A partir de si mesmo ou de uma imagem outra,
Furtava-se de todo, imune, inabordável,
O túnel negro, contra o meu melhor intento,
Que, malgrado sofrer os sucessivos golpes
Da desfortuna, não se desencaminhara.
(Porém, confesso que já não tentara tanto
Quanto algures outrora o teria tentado
Eu próprio ou talvez alguém mais sabedor
Da espeleologia interna à mente humana,
Que entreveria ao certo inúmeros detalhes,
Frutos de arguta vista experienciada
Em encontrar no mundo as coisas mais supernas
Ou em imaginá-las a seu bom proveito.)
Todavia, tentando assim, com todo o afinco
De quem não tem escolha senão se afincar,
Por sermos só nós dois, o túnel negro e eu,
Numa cela fechada em meio à noite insone,
Pensei-o ser talvez a máquina do mundo,
Revelada em essência aos meus olhos da mente,
Com seu funcionamento aberto à inteligência
Que lhe pudesse haurir a fórmula de tudo;
Porém, por mais que me doesse constatá-lo,
O túnel negro, a uma, aberto e circunspecto,
De maquinário não portava nada, exceto
Talvez a auspiciosa ausência de um engenho.
Suspeitei que abrigasse alguma criatura,
Um morcego ou talvez um ominoso corvo
Que pudesse dizer alguma coisa humana,
Alguma coisa que soasse como um fim;
Mas o túnel, ali, nigérrimo e imutável,
Não lançava nenhum ruído perceptível,
Tampouco se mostrava em algo aparentado
Com alguma entidade além da sua própria.
Ocorreu-me, por fim, o mais simples e claro:
Retornar prontamente ao início de tudo,
E a partir da primeira impressão que tivera
Perquirir quanto fosse inquirível em mim,
A fim de compreender que aquele túnel negro,
Tão próximo, mas tão terrivelmente alheio,
Fosse apenas um tipo estranho de tortura
Autoimposta, servil a triste expediente
Que me lembrasse em vão de alguma liberdade,
Da esperança nutriz de tantos planos loucos,
Dos amigos com quem busquei uma saída
E que encontraram, todos, apenas a morte;
Nem com isso, contudo, o túnel se desfez,
Embora a noite já se desfizesse ao longe,
Nem deu sinal algum de mútuo entendimento:
Nenhuma luz, nenhum lume, nenhum sinal.
Nem mesmo à luz do dia aprouve esclarecer
Aquilo que talvez não fosse esclarecível
E só se compreendesse enquanto turvo enigma
Envolto todo em treva em meio à noite insone.
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